A demanda por esses animais é alta, e o trabalho de socialização é um gargalo a ser vencido
O que faz uma pessoa cuidar, alimentar, amar um cão e, ainda assim, por vontade própria e de forma consciente, entregá-lo a outra pessoa? E se a explicação para tal atitude estivesse relacionada à empatia e vontade de fazer o bem?
É essa consciência e relação ao próximo que move os voluntários que socializam os futuros cães-guias. “Entendemos que existem pessoas que precisam dos cães muito mais que nós. E que elas também vão amá-los e cuidarão deles com muito carinho”, diz a farmacêutica Thaisa Borim, moradora de Sorocaba.
Ela e a família, formada pelo marido e duas filhas, já estão no quarto cão em socialização. Uma história de muita dedicação e amor que começou em 2021 com a chegada de Uvie, atualmente cão-guia do atleta de goalball João Vitor Silva Custódio, que vive em São José dos Campos/SP. Depois veio Tik, que não conseguiu se adaptar ao treinamento, e foi colocado para adoção como pet; em seguida Volpi, que está prestes a se tornar cão-guia, e, por último a Luz, primeira fêmea, que tem 6 meses e vive com família para a socialização. “A hora da entrega não é fácil, mas depois de uns dias vamos nos conformando que eles têm um propósito e uma missão muito maior”, relata.
Sim, e que missão. Atualmente no Brasil existem aproximadamente 7 milhões de pessoas com deficiência visual, segundo o IBGE/2022. É uma demanda alta por cães-guias, que conta com a ajuda de voluntários para sanar esse gargalo.
O treinamento de um cão só começa após a socialização, que dura 1 ano. Só então serão entregues aos instrutores para o processo de formação, que tem o tempo médio de 5 meses. O Instituto Adimax, localizado em Salto de Pirapora, já formou 88 cães-guias desde a sua fundação em 2018. O gerente geral, Thiago Pereira, ressalta a importância do trabalho dos voluntários: “A família socializadora é responsável por apresentar o mundo para esse cão, e é a partir daí que o animal começa a aprender a controlar seu comportamento para auxiliar a pessoa com deficiência.”
Durante a socialização as famílias terão que ter um convívio intenso com o cão, que nunca poderá ficar sozinho, e levá-lo aos mais variados ambientes, como mercados, cinema, shows, lojas, restaurantes, viagens, entre outros lugares. Essa vivência é essencial, pois ao se tornar um cão-guia, o cão irá acompanhar o futuro parceiro nas atividades do cotidiano. Durante essa etapa, eles (cães) aprendem até os atos aparentemente mais banais, como andar de escada rolante ou de transporte público.
Até o momento 401 famílias participaram como voluntárias do Programa Cão-Guia como socializadoras. Elas são selecionadas a partir da inscrição no site do Instituto Adimax (que possui inscrições abertas o ano inteiro), passando em seguida por uma entrevista. Durante o ano em que ficam responsáveis pelos cães, todas as despesas como ração, banhos, acompanhamento veterinário e técnico são fornecidos pelo Instituto. As famílias socializadoras são uma peça importante nessa engrenagem de transformação social, mas muitas vezes são esses voluntários que saem transformados após a experiência.
Para a enfermeira Patrícia Jung foi uma transformação tão avassaladora que merece ser lembrada a todo instante: “Thanos me salvou”, diz categórica. O cão que chegou na vida dela em meio a um tratamento de um câncer de mama, trouxe um novo sentido de alegria e comprometimento com o presente. Para nunca se esquecer da lição, Patrícia tatuou Thanos no braço direito.
Ela acredita que tudo foi um aprendizado sobre amor incondicional, pois ao chegar das sessões de quimioterapia, eram suas cachorras que a esperavam, oferecendo conforto e lealdade. Em um desses dias ouviu um podcast que falava sobre o Programa Cão-Guia. “Eu percebi aquilo como um chamado, então fui lá e me inscrevi para ser uma família socializadora. Eu senti que esse projeto realmente faria muito sentido para mim, pois da mesma forma que eu tive o apoio dos meus cães, essas pessoas também precisam deles, mas de outra forma”, recorda.
Thanos chegou em junho de 2023, um mês após a última sessão de quimioterapia e deu um novo ritmo à família. Patrícia precisou ficar mais reclusa para fazer seu tratamento de câncer, e Thanos também foi um apoio nesse processo dela voltar a sair e aproveitar cada momento. “Eu saí muito quebrada desse processo todo e o cão me ajudou. Agora, saber que ele vai ser os olhos de alguém, me traz muito orgulho”. Em março de 2024 Thanos voltou ao Instituto Adimax para dar início ao treinamento de cão-guia. O labrador está indo bem, e em breve deverá ser entregue a uma pessoa com deficiência. Patrícia gostou tanto dessa vivência que em maio deste ano trouxe para casa o filhote Cheddar, o segundo a ser socializado pela família. Se fazer o bem compensa? Patrícia não tem dúvidas: “É uma experiência muito gratificante. Eu digo sempre que os médicos salvaram o meu corpo, mas foi o Thanos que curou meu coração”.